O futuro não existe até o momento de ser criado por você. Mas para criá-lo, procure não olhar para ele no singular. Experimente convertê-lo para o plural. Assim, você vai ver que o mundo não é só um mercado, que viver bem não depende apenas de tecnologias exponenciais, e que a felicidade não depende somente de crescimento econômico.
O Futurismo nunca esteve tão popular. Tenho gostado de ver esse aumento do número de adeptos, pesquisadores entusiasmados, praticantes convictos, palestrantes inspiradores e profissionais que se dedicam ao futurismo com muita competência em suas diferentes linhas. Mas, além do restrito foco instalado nas tecnologias, eu me incomodo com a excessiva atenção concentrada numa só linha de futurismo como essa da Singularity.
Nesta semana (23 e 24 de abril) está acontecendo o Summit da Singularity University Brasil, promovido pela HSM, com o auditório lotado. Fico satisfeita por sentir que no país do futuro com eternas crises, esse tipo de movimento estimula o pensamento antecipatório.
Observo o crescente frenesi pelas tecnologias exponenciais e uma vontade imensa de imaginar futuros robóticos, marcianos, digitais. Mas o futurismo vai muito além disso. É uma perspectiva de olhar para a mudança e de tomar decisões mais acertadas.
Nesses tempos de mudança exponencial, decidir com base no que já se conhece e em padrões do passado é negar o reconhecimento de que é preciso mudar mindsets e práticas perante o mercado e perante a vida. Aplaudo o sucesso da Singularity e seus seguidores.Mas é preciso ter plena ciência de que o futurismo não é singular nem Singularity.
Um campo de estudos tão imenso, tão complexo e tão rico não pode ser representado por apenas um centro de inovação sediado nos EUA. O futurismo em toda a sua ampla existência é pluralmente representado por grandes pensadores em quase 70 anos de história.
O futurismo é legitimado pela história e pela prática, com base nos estudos do futuro (futures studies) que nasceram na Europa e nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial.
O mundo estava traumatizado por ter vivido duas grandes guerras em apenas 30 anos. Um tremendo choque como esse precisava de saídas e pensamentos novos sobre o que poderia acontecer. Otti Fletcheim chamou esse fenômeno de “futurologia”, que eu particularmente evito utilizar por ser normalmente confundido com adivinhação.
O holandês Fred Polak publicou The Image of the future (A Imagem do Futuro), obra sem precedentes sobre a relação das culturas com relação ao futuro. O francês Bertrand de Jouvenel autor da obra seminal A Arte da Conjectura e o inglês Gaston Berger criaram nos anos 50 o Centro Internacional de Prospectiva.
Foi também nos anos 50 que tudo começou nos Estados Unidos, nesse caso, pelo viés estratégico das tecnologias armamentistas.
Tendo vencido a guerra e com medo de perder o poder com a iminente guerra nuclear, o Pentágono e a Rand Corporation, centro estratégico que existe até hoje, foram atrás de grandes cérebros como Herman Kahn, Ted Gordon (que fundou o Projeto Millennium) e outros gênios futuristas para visualizarem futuros que indicassem a um grande planejamento estratégico nacional.
Tudo isso gerou cenários com simulações e hipóteses como se a terceira guerra estivesse acontecendo. Eles não tentaram prever nada; ao contrário, entraram em experiências imaginativas. E é com base nesse imaginário que o Futurismo até hoje se sustenta como ciência que prepara pessoas e organizações para as mudanças.
Muito antes da Singularity, que a partir de 2008 começou a atrair empresários e gestores, o futurismo entrou no mundo empresarial nos anos 70, quando a Shell decidiu desenvolver cenários alternativos em plena crise do petróleo e foi a única corporação a sair da crise por ter se preparado antes que os concorrentes. Esse caso a consagrou como gestão inovadora através de modelos de prospectiva estratégica, que tem a ver com a aplicação do futurismo na gestão organizacional.
A história continua. Nos anos 60, movimentos futuristas começaram a surgir e criaram a World Future Society, que chegou a realizar, até dois anos atrás, conferências marcantes que aglutinavam milhares de pessoas do mundo todo, eu entre elas.
Nos anos 70, por um caminho mais acadêmico, foi criada a World Futures Studies Federation e o interesse no futuro alcançou duas universidades: a do Havaí e a de Houston, esta onde fiz meu mestrado sob a coordenação de Peter Bishop, que foi meu orientador.
O futurismo não é singular nem Singularity (Crédito: Shutterstock)
A partir dessas duas universidades, os estudos do futuro passaram a ter legitimidade acadêmica. Hoje existem outras escolas (além das do Havaí e de Houston) que oferecem programas de mestrado e doutorado. Num próximo artigo vou falar das escolas que estudam e ensinam o futuro pelo mundo.
A ideia aqui é deixar claro que o futuro não é singular. O futuro é plural. Por isso que a nomenclatura correta é futures studies e não future studies. Não tem só um pensamento que o represente; tem vários. Não tem nacionalidade definida; vai além de um país, abraça o mundo.
É estudado em várias línguas, não apenas o inglês. Não é unidisciplinar, é multi e interdisciplinar. Não trata apenas de tecnologias, porque avanços tecnológicos sem contexto social, cultural, político e ambiental esvaziam a existência humana e são perigosos.
Por essa pluralidade de tempos e perspectivas, resolvi estudar o futuro na virada do milênio (anos 2000-2001), a convite de Peter Bishop. Fiquei fascinada pela ideia de que, apesar do futuro não existir, ele pode ser criado. Não é destino nem singular, mas é plural e oferece escolhas.
Atuo como futurista profissional há 18 anos. Iniciei esse percurso em busca de novas perspectivas pessoais e profissionais. No começo dos anos 90, a futurista brasileira Lala DeHeinzelin, sempre uma inspiradora e amiga, começou a me mostrar publicações sobre o tema.
Em 1995, a jornalista Mirna Grzich (a musa da nova era) me ampliou os horizontes através da Imaginária, inesquecível conferência, que reuniu no SESC Pompéia futuristas, astronautas, artistas reunidos em linguagens e pensamentos de vanguarda.
Em 1999, em contato com Peter Bishop, coordenador do Programa de Estudos do Futuro da Universidade de Houston, resolvi fazer um mestrado nos EUA. Desde que me graduei e comecei a me apresentar como futurista, tive de explicar que eu não trabalhava com ocultismo nem sabia fazer previsões.
Foram necessários quase 20 anos para que aquilo que se confundia com esoterismo (com todo o respeito aos esotéricos), pudesse ser desmistificado e passasse a entrar nos diversos palcos brasileiros de summits, congressos, webinars e cursos.
São grandes as contribuições de Peter Diamandis, Ray Kurzweil, Jason Silva, Michio Kaku, Amy Web, Ian Pearson, James Canton, Andy Hines, Thomas Frey, Jane McConigal, entre outros, que representam o futurismo da atualidade. Mas não podemos esquecer de quem abriu o pensamento lá atrás e inspirou as várias linhas de pensamento.
Tive o privilégio de estudar com alguns dos grandes mestres que essa “história do futuro” gerou. Um deles não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente nem de interagir: Alvin Toffler, que tornou o futurismo pop.
Mas pude beber diretamente da fonte com: Peter Bishop (que foi meu orientador de mestrado); Oliver Markley (raridade em futurismo, meu professor de métodos intuitivos); Wendy Schultz (referência mundial em métodos de foresight, minha professora de metodologias quali); Chris Jones (ex- presidente da World Futures Studies ederation e meu professor de futuros globais); Hazel Henderson ( visionária das novas economias); Barbara Marx Hubbard (futurista da transcendência).
O futuro não existe até o momento de ser criado por você (Crédito: Shutterstock)
Aprendi muito também numa relação mestre-discípula com Richard Slaughter (com sua visão integral), Jim Dator (e seus futuros radicais), Sohail Inaytatullah (que faz a ponte entre o futuro e a macrohistória), Riel Miller (futurista da UNESCO e da escola de “futures literacy”), Eleonora Masini (considerada a mãe do futurismo mundial), Guillermina Baena (expoente da prospectiva latino-americana), Ted Gordon (ex-Rand Corporation, cofundador do Projeto Millennium e um dos autores do método Delphi), Jerome Glenn (ex-Universidade das Nações Unidas, cofundador do Projeto Millennium e criador de métodos consagrados como a roda do futuro), e outros que certamente estão sendo injustiçados por eu ter me esquecido deles.
Preciso honrar essa história, o conhecimento que adquiri e que compartilho através dos meus artigos e cursos abertos a toda a sociedade.
O futuro não existe até o momento de ser criado por você. Mas para criá-lo, procure não olhar para ele no singular. Experimente convertê-lo para o plural. Assim, você vai ver que o mundo não é só um mercado, que viver bem não depende apenas de tecnologias exponenciais, e que a felicidade não depende somente de crescimento econômico.
Assim como a inovação não tem só um endereço. Além do Silicon Valley (EUA), existem grandes centros mundiais na Suécia, em Israel, na Finlândia, na China, na Coreia do Sul, no Chile e, acreditem, no Brasil – não somente nas instituições como em iniciativas populares.
A pluralidade do futuro pode transformar sua visão de mundo e multiplicar suas ideias. Pode até mudar o rumo da sua história, assim como mudou a minha.